quarta-feira, 6 de outubro de 2010

no mundo dos táxis (XII)

«Taxista - Boa noite.
Eu - Boa noite. É para a Margem Sul.
Taxista - Certo. Mais concretamente para onde?
Eu - Corroios. Mas depois eu indico-lhe o caminho, não se preocupe.
Taxista - Ah, mas eu conheço essa zona.
Eu - Ai sim? Então?
Taxista - Eu moro no Laranjeiro.
Eu - A sério? Então é perto de onde eu moro. Vou para o Miratejo. Então e se não for indiscriminação, por que trabalha em Lisboa? Rende mais?
Taxista - Eu antigamente morava em Lisboa.
Eu (*marlon a sentir-se confuso, tendo em conta que, bom, miratejo é uma zona um tanto ou quanto, vá, perigosa e, erm, horrível de se morar*) - Ah, compreendo... Então mas há quanto tempo se mudou?
Taxista - Há 4 anos.
Eu (*cada vez mais confuso*) - Ah... vejo. E antes morava onde?
Taxista - No Marquês do Pombal.

(Ponto de ordem à mesa: trocar o Marquês pelo Laranjeiro é como, vá, trocar um condomínimo privado em Telheiras com piscina, spa, e um jardinzinho zen com bambú e uma cascata na sala por uma casa ranhosa na Cova da Moura cuja única janela dá para uma ETAR)

Eu (*estupidamente confuso*) - Erm... certo. Mas, acha que fez uma boa escolha?
Taxista - É a casa dos meus sonhos! Sou muito mais feliz ali.

(Segundo ponto: Ninguém é feliz no Laranjeiro. Isto é o mesmo que dizer que o objectivo de vida de uma pessoa é ter a lua-de-mal no Cacém, ou ganhar o passe social da Carris num qualquer concurso televiso, ou ter o curso técnico-profissional intensivo de remoção de terras, aka, coveiro)

Eu - Mas então mora numa boa zona do Laranjeiro, certo? Tipo perto do Oásis ou isso?
Taxista - Moro sim. Mas é mais lá para baixo.
Eu (*fica desconfiado*) - Então onde é que é?
Taxista - Na rua da Escola Secundária, na Praceta do Minipreço.

(Terceiro ponto: Oh amigo, ninguém diz que a sua casa de sonho fica do outro lado da rua do início do bairro do Miratejo Cutelinho - e, não, o nome não provém do acaso da existência de uma loja fundada em 1800 e troca o passo, por uma família de alta burguesia com um apelido chique tipo Mello de Vasconcellos, que fabricava facas de renome internacional em porcelana -, que é, vá, um dos três piores bairros da área metropolitana de Lisboa segundo a Visão, tendo uma taxa de criminalidade per capita superior à da Quinta da Fonte, Cova da Moura, Buraca, Damaia, etc.)

Eu (*apavorado*) - Erm... E, erm, se me permite, não tem medo de viver ali?
Taxista: Medo? Mas medo porquê? Aquilo é tão pacífico!

(Quarto ponto: Claro! Então mas os sons dos tiros são na realidade, erm, fogo de artifício para celebrar a liberdade. E os carros de intervenção da polícia são carrocéis. E tudo aquilo é um circo! - lá que existem lá uns quantos cavalos e outros tantos camelos, existem)

Eu - Olhe, não é essa a percepção que tenho. Aliás, eu se fosse a si nem saía de casa quando o Sol se pusesse. Aquilo ali até tem, vá, alguma criminalidade.
Taxista - Olhe, nunca tive nenhuns problemas. Costumo sair, muitas vezes durante a noite para ir àquela pastelaria no Miratejo...
Eu - ... a Bela?
Taxista - Sim, essa mesmo.
Eu - Mas a pastelaria fecha tão tarde!
Taxista - Sim, mas eu normalmente só venho para casa por volta da uma/duas da madrugada.
Eu (*estupefacto*) - ... a pé?!
Taxista - Claro!

(Quinto ponto: Já percebi! Das duas uma: ou o senhor tem um fedor indiscritível que afasta mitras, basofes, chungas e ladrões e gatunos nas suas variantes feudais, ou então move-se a mircro-peidinhos como o Super-Homem o que lhe permite uma velocidade supersónica, invisível ao olhar humano. Qualquer uma destas hipóteses será sempre mais plausível que andar às 2 da manhã sozinho pelo Miratejo Cutelinho há 4 anos e ainda não ter sido na melhor das hipóteses, vá, estropiado)

Eu - Pois, compreendo. O que realmente me chateia no Miratejo (*oh para mim a ser irónico*) são as baratas. Também não tem o mesmo problema no Laranjeiro?
Taxista - Existem baratas no Miratejo?
Eu - Oh amigo, isso agora já é gozar comigo. Então elas são às dezenas na rua! Uma vez, ao pé da casa de um amigo meu, num raio de, vá, 10 metros e em menos de 5 minutos matei eu 23!
Taxista - Ah, mas eu nunca vi uma única barata em Miratejo.»


Conclusão: Tudo isto faz sentido! Sendo o Miratejo Cutelinho uma das maiores zonas de tráfico de droga do país (a par com cortarem pessoas em 7 pedaços e as atirarem para o lodo no moinho de maré - true story!) o senhor, na realidade, nunca saía à noite para ir à Pastelaria Bela. Ora, atravessava a rua, metia cavalo na veia (e aqui se entende a parte do Circo da coisa) e tudo aquilo parecia maravilhoso e adorável. Ou isso, ou o senhor é do Partido Comunista e finalmente descobriu o prado verdejante do Comunismo, em que borboletas voam e as flores irradiam beleza todo o ano (algo à Música no Coração), e chama-lhe Laranjeiro e, nitidamente, não é o mesmo que faz fronteira com o bairro em que vivo.

9 instantâneas:

Carlos disse...

Este senhor não mora na mesma zona que nós, certamente. Não frequenta certamente a mesma zona que nós. O homem deve morar no universo paralelo em que Miratejo é um bairro de luxo.

Selma disse...

Até eu que não moro propriamente nessa zona da margem sul, conheço melhor a realidade do laranjeiro e miratejo do que esse senhor...

Marlon Francisco disse...

Carlos + Selma: É o que eu digo, o senhor vive no ideal do Comunismo.

Ginny disse...

Aposto que quando ele vai aos saltinhos para o Miratejo, canta "The hills are alive with the sound of music"...

Anónimo disse...

O homem deve ser do bloco de esquerda e andou na praça, bairros, Miratejo e arredores com o Francisco Louçã a dizer que ia ajudar a malta só pode! E é visto como um herói.

DD disse...

Desculpa mas parece quase ficção. Durante uns breves instantes achei que o Senhor conhecia outra localidade denominada Miratejo, algures no paraíso.
Ainda bem que há gente feliz (não com lágrimas) mas com o lado negro da vida.

Casquinha disse...

hmmm...Talvez tenha mudado muito, vivi e estudei no Mira para cima de 10 anos. É certo que foi há coisa de quinze anos atrás. Nunca ouvi falar de grandes problemas nem nunca os tive. Se foi por mero acaso, ainda bem, porque adorei ter vivido parte da minha adolescência por aí :)

Marlon Francisco disse...

Giny: É da coca ou do LSD.

Anónimo: Não me parece que o Francisco Louçã seja muito de andar nas praças. Isso é mais do amigo Portas.

DD: Garanto-te que eu continuo a achar que o senhor conhece outro Miratejo onde as borboletas voam o ano inteiro.

Casquinha: Sem dúvida o Miratejo mudou muito de há 15 anos para cá, desde a construção do Miratejo Cutelinho e a sua povoação. Mas também te posso garantir que já passou por alturas piores.

Anónimo disse...

Vivi em Miratejo (nunca me habituei a dizer "no" Miratejo) entre 1998 e 2001 (não chegou a 3 anos, aos 2 e meio não aguentei mais e voltei para Lisboa) e, até hoje, tenho pesadelos com baratas!

Palavra de honra, sou uma atormentada com isso até hoje. Nunca vi um sítio com tantas baratas. Ultrapassa-me, até hoje, de onde vem aquela bicharada toda...
Jurei para nunca mais sequer lá passar. Esse taxista anda a viver numa dimensão alternativa qualquer.
Espero que a taxa de ocupação das baratas tenha diminuído entretanto ;) (e sim, tornou-se mesmo numa fobia e obsessão, acho que não se nota *risos*.... er... muito.)

Ana

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